Iniciamos o texto com “violências”, de modo plural, posto que nossos argumentos partem de uma noção conceitual ampla: tudo aquilo que recorta a sociedade a partir do gênero e desqualifica, inferioriza, hierarquiza a menor o que se estabelece na ordem do feminino, e que gera também violência patriarcal, sentida de formas múltiplas.
Claro, a violência física doméstica conjugal é sempre mais falada, entretanto nossa abordagem busca anseios mais profundos, quer ver aquilo que enraíza e fundamenta a estrutura social na divisão social da reprodução do trabalho invisibilizado. Sabe aquele trabalho que chamam de “amor” e “cuidado”, de “instinto materno”, mas que esconde um desgaste mental na toxidade do dia-a-dia, que esgota as mulheres e que ao final do dia nos faz questionar como afinal os homens conseguiram ser tão produtivos na quarentena, enquanto a nós sobram dores físicas dos períodos de afazeres domésticos e cuidados das crianças, dos idosos, e dos homens, dos bichinhos da casa, da alimentação, da higiene, da organização e dinâmica de horários, das atividades dos pequenos, do abastecimento da despensa, da correta higienização com álcool 70% dos itens que chegam em casa, do uso da água sanitária, das mãos lesionadas dos produtos químicos a fim de proteger e cuidar da família desse vírus incerto e sorrateiro, se todos saíram de máscaras, se os cabelos estão presos, se o lixo foi retirado, se as roupas não estão contaminadas, e cumulado a isso, nosso trabalho “de verdade” que veio pra casa, esse espaço em que as mais privilegiadas delegavam a outras mulheres, e agora não nos escapa. Nossa, quanta coisa consegue uma mulher pensar e cuidar? E as listas, quando paramos de fazer longas listas de afazeres?
Juliet Mitchell diz que as mulheres são a revolução mais longa[1] no tempo, em razão dessa pluralidade de especificações que nos recortam (idade, raça, classe social, escolaridade…) isso cria demandas e necessidades plurais. Entretanto, no confinamento, que cumprimos, ou tentamos, a nós se revelam algumas urgências que os prazeres do capital e as possibilidades de ir e vir e do trânsito de outras pessoas em nossos lares maquiava: que a violência se revela e submete quem lava a louça. O ambiente da domesticidade é feminilizado, mas mesmo neste ambiente não estamos seguras – aliás, muitas vezes é justamente neste ambiente que não estamos seguras — [2].
A violência de gênero é uma dessas veias abertas de um problema que de muito os agentes judiciais e políticos (e político-judiciais) olham para o outro lado, como se não fosse muito bem com eles, aliás, sendo sinceras, que como sociedade olhamos para o outro lado a fim de não cumprimentar aquele colega indesejável. E que, neste texto, tratamos diante da toxidade que as estruturas do patriarcado não nos permitem nomear, da domesticidade revelada que grita no cotidiano, que se colocou pra debaixo do tapete de uma divisão imaginária entre público e privado, das preocupações com as aparências e a “neutralidade” fictícia, tão normatizada a partir do “masculino”, e na realidade silenciosa de todas nós que ocupamos espaços institucionais regidos pelo patriarcado, que perpetua sistematicamente seu padrão: ainda que conceda espaços político-institucionais a mulheres, elas falam com a voz do lugar comum do “homem branco burguês”, o que se complica quando estamos todos confinados em espaços que derrubam esses muros e essas divisões espaciais de público e privado.
Assim, diante da pluralidade de urgências, coloco luz na – falsa – oposição binária entre ambientes privados x ambientes públicos, e as ações vetoriais que se afetam, ciente de que tratamos de longa data dessa divisão artificial que submete e condiciona mulheres e crianças ao socialmente inferior ambiente doméstico, enquanto os homens ocupam a pólis, ambiente tido como nobre e de disputa.
Qualquer pessoa que estude gênero com o mínimo de seriedade já se deparou com essa questão que é absolutamente sensível à pauta: ao tratar de gênero e de mudanças estruturais para ações além do reformismo condescendente e agradável ao neoliberalismo, precisamos “perturbar”, problematizar, essa divisão público x privado. Aparentemente, nada como uma pandemia global para colocarmos as prioridades em dia. As adequadas orientações de tele trabalho – uma realidade possível para alguns setores e algumas profissões – também traz atenções para os espaços da casa e dos cuidados privados, locais que tradicionalmente são delegados às mulheres num acúmulo de funções não remuneradas invisibilizadas e tratadas como “menores”.
A mulher profissional não “soltou” nada. Muito de nosso adoecimento mental se dá pelo excesso e sobrecarga de funções e cobranças: temos que ser “perfeitas” – perfeição essa imposta a partir do ponto de vista patriarcal. Temos que ser magras, “fitness”, jovens, trabalhar fora, sermos excelentes mães, donas-de-casa, cuidadoras, e atualmente, fiscais de vírus. E se não somos? Bom, você falhou em cumprir seu papel perante a sociedade. Seu marido te traiu, mas você não cuidou bem dele, certo? A casa está suja, que tipo de mãe não deixa seu ambiente familiar aconchegante? Você precisou daquele brigadeiro depois de um dia difícil, mas saiba que amanhã são horas de academia, culpa, falha. Enfim, acumula-se funções em realidades que não são habitualmente discutidas e que agora ganham espaço por nos ser já experimentado de outras datas.
Com escolas, creches, auxiliares domésticos e avós em afastamento social, todas essas funções além do tele trabalho, situação que se agrava quanto menor forem as possibilidades econômicas e de suporte familiar. Enquanto para os homens a preocupação, senão exclusiva, em bom tamanho, é com o trabalho “público” e, àqueles mais privilegiados, com as leituras e “colocar em dia” aquilo que lhes “faltava tempo”, agora decidindo o que fazer com o tempo que lhes sobra, para as mulheres o tempo se torna mais escasso pelos acúmulos e pelo desgaste dos atritos.
A quarentena ainda coloca mulheres e crianças condicionadas no mesmo ambiente que seus abusadores[3], realidade que convive em diferentes classes sociais, ainda que o mapa oficial da violência doméstica tenha raça e classe acentuada. A domesticidade expõe relacionamentos muito bem vestidos em aparências públicas (alguns com grifes caras) a sua triste dinâmica privada de violências e agressões.
Tais violências aqui trazidas tardaram a serem tratadas de modo honesto como política pública na busca de respostas estruturais, e não apenas pela formalização legal. Agora possivelmente não será feito, diante de lideranças políticas que insistem em minimizar a gravidade da pandemia (“gripezinha” chamou o minúsculo e egocêntrico presidente[4]), que dirá tratar de gênero, haja vista que demonizam a pauta, cortam verbas de suporte para as mulheres em situação de violência doméstica atribuindo a determinações exclusivamente privadas como “mudança de comportamento”[5], ou resolvem por medidas inócuas como pintar as paredes de delegacias das mulheres de rosa[6], ou agrava o problema proibindo qualquer discussão de gênero em todos os ambientes de conhecimento por ser “partidário” ou “ideológico”[7].
Resta claro até aqui – ou restará quando isso tudo passar, aparentemente em setembro de 2020, conforme previsão do Ministro da Saúde[8] – que absolutamente todas as esferas da vida e subsistência humana se comunicam, e principalmente que todos os corpos são políticos. Impossibilitar discussões de gênero, o avanço das pesquisas científicas em todas as áreas[9] (seja pra descobrir uma vacina para o vírus, seja para compreender as dinâmicas sociais que nos recortam) é um luxo anticientífico que não temos tempo hábil para dispor diante das complexas dinâmicas de urgência que batem à nossa porta sem álcool em gel (porque alguém muito egoísta e com dinheiro foi ao mercado e estocou em casa[10]).
Na década de 1940 Simone de Beauvoir, n’O Segundo Sexo, disse que mesmo o mais medíocre dos homens[11] se sente um semideus diante de uma mulher. O Brasil de 2020 é um retrato dessa máxima que perdura por nos serem negadas mudanças estruturais e estruturantes, e que nos coloca diante de uma situação que nos cobrará uma preço elevado em saúde mental, já que somos “liderados” politicamente por homens medíocres e que não enxergam para além do espelho, e que entabulam a “mulher virtuosa” evangélica e subserviente, que aceita violências calada para “mudar o homem pela oração”, como o único modelo possível de subjetividade.
Talvez nós mulheres sejamos mesmo a revolução mais longa, mas o corona vírus, tentando enxergar esse copo “meio cheio”, eventualmente nos auxilie a adiantar um pouco o “finalmente” deste nosso ato radical de mudança, que afinal, quando se expõe, se revela, e revelados os problemas passam a ter soluções buscadas. A pólis e o ambiente doméstico não são espaços diversos, essa divisão é uma conveniência do patriarcado e uma elucubração retórica que servem a quem sempre serviu e que talvez não nos sirva mais. A domesticidade é a pólis. Sempre foi, e é nosso espaço.É hora de ocupá-lo.
EMMANUELLA DENORA é advogada, pesquisadora em gênero e democracia, graduada em Direito pela UEL, mestra em Ciência Jurídica pela UENP/Jacarezinho, doutoranda pela UFPR em Direitos Humanos e Democracia, membra da ABJD, Presidenta da Comissão da Mulher Criminalista da ANACRIM/PR e enquanto escrevia esse texto também fazia o almoço
LUIZA TERRA é advogada, professora, parecerista, mestra em Criminologia pela Universidad Pablo de Olavide/Espanha, doutoranda em Direito Penal Econômico pela mesma universidade, Vice-Presidenta da ANACRIM/PR e enquanto escrevia esse texto seu filho Diego contava os números no teclado do notebook.
Acesse o site de origem: https://caosfilosofico.com/2020/04/12/cotidianas-violencias-de-genero-do-cotidiano/
[1] MITCHELL, Juliet. Mulheres: A Revolução Mais Longa. In < https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2013/01/G%C3%AAnero-J-Mitchell.pdf > Acesso em 11/04/2020.
[2] < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/02/feminicidio-cresce-no-brasil-e-explode-em-alguns-estados.shtml > Acesso em 11/04/2020. Assim também revela < https://radios.ebc.com.br/tarde-nacional/2020/03/casos-de-violencia-domestica-ja-aumentaram-9-durante-isolamento-social > Acesso em 11/04/2020.
[3] < https://exame.abril.com.br/brasil/mulheres-sao-minoria-nos-homicidios-mas-estao-mais-vulneraveis-em-casa/ > Acesso em 29/03/2020
[4] < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/nao-vai-ser-uma-gripezinha-que-vai-me-derrubar-diz-bolsonaro-sobre-coronavirus.shtml > Acesso em 29/03/2020
[5] < https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/bolsonaro-defende-corte-de-verba-para-protecao-das-mulheres,cd45ac6cf99faf26aeb1ad6760081017z50tdo1q.html > Acesso em 29/03/2020
[6] < https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/11/25/damares-promete-salinhas-cor-de-rosa-em-delegacias-de-todo-pais.ghtml > Acesso em 29/03/2020
[7] < https://www.conjur.com.br/2018-dez-10/mp-debate-proibicao-abordagens-genero-escolas > Acesso em 29/03/2020
[8] < https://www.cartacapital.com.br/saude/casos-de-coronavirus-so-devem-desacelerar-em-setembro-diz-ministro/ > Acesso em 29/03/2020
[9] https://educacao.uol.com.br/noticias/2020/03/19/capes-altera-criterios-de-bolsas-de-pesquisas-entidades-temem-cortes.htm > Acesso em 29/03/2020
[10] < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/17/farmacias-do-rio-nao-conseguem-repor-estoques-e-consumidores-reclamam-de-precos-abusivos-do-alcool-gel.ghtml > Acesso em 29/03/2020
[11] < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-18/jair-bolsonaro-retoma-credencial-machista-com-insinuacao-sexual-contra-jornalista.html > Acesso em 29/03/2020
Publicado por: Jaqueline