Filhos e filhas dos feminicídios: como a violência doméstica impacta na vida das crianças e adolescentes cujas mães foram cruelmente e violentamente assassinadas?
O problema da violência doméstica é social e cultural. É uma questão de saúde pública e precisa do compromisso de toda a sociedade no seu enfrentamento. É uma questão de educação, de cidadania, de mudança de comportamento, de construção de novas masculinidades. O enfrentamento à violência é questão que importa para todos nós: sociedade, justiça, segurança pública, educação, gestão pública – deve ser uma política de estado! E enquanto a violência de gênero não é erradicada, mulheres continuam morrendo por dizerem não a um desconhecido na rua pela primeira vez, ou por manifestar o desejo de separação após um casamento de anos.
A violência doméstica atinge a mulher de forma muito cruel e impacta negativamente em várias dimensões relacionadas ao exercício de sua autonomia, da saúde física e emocional, da maternidade, do poder familiar, da capacidade laboral, da produtividade e de sua capacidade decisória, só para citar alguns dos exemplos mais comuns.
O primeiro reflexo da violência doméstica é no círculo familiar. O ambiente que deveria ser seguro e saudável está tóxico e abusivo – o que refletirá também no saudável desenvolvimento, na formação e na personalidade dos filhos e filhas, que presenciam ou também sofrem com a violência.
As mulheres precisam romper o silêncio e procurar ajuda especializada.
É certo que ninguém “casa pra separar”: a mulher em situação de violência tende a querer preservar a harmonia familiar e acaba se enredando num ciclo doentio de violência – mas precisa ter percepção da violência que sofre, logo no início, e ter coragem para terminar o relacionamento, para o seu bem – e para o bem de seus filhos.
Muitas mulheres justificam não terem seguido adiante com as denúncias feitas contra os agressores e razão de eles serem o pai de seus filhos ou de serem os provedores (“ele me bate, mas dá um teto para a família e coloca comida na mesa”). A preocupação da mãe é preservar a relação paterna e também não ser acusada futuramente pelo filho de ter colocado o pai “na cadeia” – mas aí os filhos permanecem num lar violento e desestruturado. As crianças sofrem violência quando as mães sofrem violência. Elas podem não apanhar, mas estão vendo as mães sofrerem.
As crianças são alvo da violência de diferentes formas: ao presenciar atos de violência doméstica, ao serem usadas como instrumento de chantagem, ou ser também agredidas física ou moralmente.
Por outro lado, as mulheres em situação de violência estão tão fragilizadas que sequer conseguem tocar os rumos da própria vida – consequentemente, não conseguem dar aos filhos os cuidados necessários ... podem acabar perdendo o poder familiar e a guarda – o que agravará ainda mais a tristeza e a melancolia dessa mulher-mãe-vítima.
Segundo pesquisas, crianças expostas à violência doméstica têm maiores tendências de desenvolverem problemas de saúde, como ansiedade, depressão e a própria repetição das violências com seus pares, além de estarem mais propensos a delinquência, ideação suicida e dependência química. A literatura internacional conceitua essa forma de violência indireta como vicária, na qual os filhos são manipulados pelo agressor de forma a atingir um dos pais: abandono afetivo e alienação parental são alguns dos exemplos mais comuns enfrentados nas ações judiciais brasileiras chegando a casos mais graves em que o companheiro assassina o próprio filho como uma forma de atingir a mãe.
(*) No mês de setembro/2019 tivemos o caso de um jovem de 21 anos que assassinou o filho de 2 anos afogado em uma bacia, para “punir” a ex-namorada, também de 21 anos, que havia terminado o relacionamento. Leia a notícia: https://www.opantaneiro.com.br/aquidauana/acontece-nesta-segunda-feira-primeira-audiencia-sobre-caso-de-pai-que/153789/
(*) No mesmo mês, no Paraná (Londrina), o pai obrigou o filho de 9 anos a gravar uma mensagem de adeus à mãe e logo depois de enviar o vídeo por whatsapp, jogou o carro contra um caminhão na estrada. Ambos morreram. Veja a notícia: https://ricmais.com.br/noticias/pai-e-filho-morrem-acidente-londrina/
A violência doméstica, portanto, coloca em risco a vida das mulheres e também da prole. Traz impactos cruéis na saúde mental das mulheres e também na saúde mental dos filhos e filhas, que vivenciaram esse relacionamento e que tendem a sofrer sequelas sociais e psicológicas parecidas com as da própria vítima.
O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo.
As crianças são as maiores vítimas invisíveis dessa violência.
Em MS, foram registrados 140 feminicídios desde a vigência da lei.
No ano de 2019, ocorreram 30 feminicídios consumados e 98 tentativas.
Mais de 90% dessas mulheres morreram pelas mãos daquele homem que um dia amaram.
Essas mulheres deixaram mais de 50 filhos e filhas órfãs de mãe.
A violência doméstica, sobretudo o feminicídio, altera também a vida de outras famílias: como criar uma criança ou um adolescente que chegou repentinamente na sua vida, nessa condição trágica? Muitas famílias não tem estrutura emocional ou financeira. E aí seguem os impactos na assistência social, na saúde, na educação ...
Esses filhos e filhas do feminicídio precisam não só superar o luto, mas também ter a compreensão do fenômeno da violência de gênero para não repetirem comportamentos dominantes ou submissos. A forma como nos relacionamos é aprendida em casa.
Os meninos não podem crescer conhecendo a violência como única forma de expressão das emoções, ou achando que seu papel na relação de afeto deve ser de posse e dominação. As meninas não podem crescer vendo a violência como uma forma de amor ou introjetando que o seu papel na relação é a de submissão.
É certo que a Lei Maria da Penha prevê no art. 30 a especial atenção às crianças e adolescentes quando do atendimento pelas equipes multidisciplinares dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, mas essa ainda é uma medida que carece de implantação – não temos Centros Especializados de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de violência, como temos para as mulheres. Não temos um equipamento como a Casa da Mulher Brasileira, para crianças e adolescentes vítimas. Precisamos voltar nosso olhar e nossa atenção também para os filhos e filhas dos feminicídios.
Os filhos da violência de gênero, por Alice Bianchini
"Os prejuízos para os filhos ocorrem em todos os níveis: social, psicológico, emocional e comportamental, “afetando de forma altamente negativa seu bem-estar e seu desenvolvimento, com sequelas a longo prazo que, inclusive, pode chegar a transmitir-se por meio de sucessivas gerações.” Compromete, portanto, o desenvolvimento futuro dos indivíduos imersos nesse ambiente conflitivo. E comprometendo-os, compromete toda a futura sociedade. O pai e a mãe são importantes figuras de apego e referência para a vida dos filhos e para os comportamentos que terão quando da fase adulta." Leia o artigo na íntegra: https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/493876113/os-filhos-da-violencia-de-genero
Reportagens do G1 sobre “Filhos do feminicídio”, pela jornalista Jaqueline Naujourks
Matérias divulgadas na TV Morena sobre “Filhos do feminicídio”
http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/videos/v/filhos-do-feminicidio/7629888/